Física nuclear analisa filme Radioactive e destaca trajetória de mulheres na USP

Fonte: Divulgação / Netflix
Fonte: Divulgação / Netflix

Reconhecida por parte da comunidade científica, ignorada pela Academia Francesa de Ciências. Não fosse uma carta do marido, Pierre, a própria Academia Real Sueca de Ciências também não teria concedido a Marie Curie o primeiro de seus dois prêmios Nobel. Mesmo assim, na cerimônia de entrega do prêmio, foi tratada como uma mera auxiliadora.

A trajetória da cientista que comprovou a propriedade atômica da radioatividade já havia sido retratada no cinema com o filme estadunidense Madame Curie, de 1943. Em 2019, Radioactive (disponível na Netflix) aposta em um cenário romântico da Paris do século XIX para revisitar os principais fatos da vida de Marie Skłodowska-Curie. Em ambos, historiadores da ciência questionam a acurácia científica das produções, apontando falhas nas representações científicas e no contexto histórico.

“Eu acho que tem várias coisas ali que remetem aos dias de hoje, infelizmente, no sentido da falta de reconhecimento. Naquele momento eu acho que talvez mais por ser mulher do que pela área que ela abraçou”, avalia Elisabeth Yoshimura, professora do Departamento de Física Nuclear do Instituto de Física (IF) da USP.

Ela destaca que a história das mulheres que receberam o Nobel traduz o que as instituições enxergam a respeito das cientistas. Menos de 4% dos laureados são mulheres.

Uma publicação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) de São José do Rio Preto e da Universidade Federal de Alagoas analisou a história não contada do filme por meio da percepção de alunos de graduação em física. No artigo, os autores lamentam que Radioactive – que se propõe ser uma história real e até recomendada pela Amazon como didática – não se dedique a apresentar aspectos fundamentais da radioatividade. Paradoxalmente, o longa explora o uso de elementos radioativos para finalidades inadequadas, sempre exibindo a cientista com pequenos frascos de cor verde.

O Grupo de História, Teoria e Ensino de Ciências da USP (GHTC) indica que o esforço físico exigido pelo trabalho de Curie era enorme. “Ao invés de utilizar pequenos tubos de ensaio, era preciso manipular baldes e caldeirões com cerca de 20 kg de material de cada vez, transportando os recipientes de um lado para o outro, fervendo os líquidos, misturando com outros, borbulhando enormes quantidades do ácido sulfídrico fedorento”, descreve o físico, filósofo e historiador da ciência Roberto de Andrade Martins, na biografia de Curie.

Com as promissoras descobertas, seu marido deixa as pesquisas sobre eletricidade e magnetismo e passa a colaborar no desconhecido universo dos fenômenos radioativos. O casal terminaria por apresentar ao mundo dois novos elementos químicos: o polônio e o rádio, levando-os ao prêmio Nobel de Física.

De acordo com o cientista social Gabriel Pugliesi, o primeiro Nobel de Madame Curie foi o único na história concedido a três cientistas. A láurea, no entanto, foi dividida em dois: metade para Henri Becquerel “em reconhecimento aos serviços extraordinários que ele tem desenvolvido pela radioatividade espontânea”, e metade para o casal “em reconhecimento aos extraordinários serviços que eles têm desenvolvido com suas pesquisas conjuntas sobre o fenômeno da radiação descoberto pelo professor Becquerel”. 

Em 1911, já viúva, Marie Curie é indicada novamente ao Nobel, agora de Química. Mas circunstâncias de sua vida pessoal incidem diretamente sobre sua atuação científica, e a mesma Academia de Ciências de Estocolmo que a condecorou com o Nobel, sugeriu que ela abdicasse do recebimento. Machismo e xenofobia foram elementos persistentes em sua trajetória até a morte, aos 66 anos.

Mulheres na física

“Tem que ter paixão pela física para continuar na área”, reconhece Elisabeth, que se graduou na primeira turma do Instituto de Física da USP na Cidade Universitária. Dona de uma memória perspicaz, ela recorda que embora seja uma das únicas que ainda não se aposentou, não foi a primeira a desbravar o então masculino ambiente acadêmico das exatas. Dos 120 professores titulares ativos do IF, apenas 27 são mulheres.

“Naquela época, a gente não devia ter nenhuma professora livre-docente no instituto. A primeira foi a Lia Queiroz, mas ela se aposentou logo em seguida. Aí deve ter vindo a Marília Caldas, a Alinka Lepine. De ter uma, duas docentes titulares. Isso vem mudando”. Ela acredita que, além de motivos externos, as mulheres demoram mais para seguir na carreira porque se satisfazem menos com o que fazem do que os homens. Despretensiosamente, ela alegou isso para sua banca de livre-docência, composta de cinco homens. “Olhei em volta e pensei: ‘pronto, me ferrei’, porque acabei de dizer que homens não preparados se arriscam e as mulheres não”, recorda sorrindo.

Mas, em quase 50 anos de carreira, não são apenas memórias divertidas que a docente acumula. Em um concurso, ela chegou a escutar que um candidato seria escolhido porque ele era pai de família, e assim sua esposa não precisaria trabalhar. “Eu também era mãe de filhos, na época, mas ninguém se lembrou que, pelo mérito, talvez eu merecesse maior nota que ele.”  Para ela, o episódio retrata o machismo arraigado na sociedade, que se reflete também no ambiente acadêmico. 

Atualmente, a professora Yoshimura coordena o grupo de trabalho que formulou o mais novo curso de graduação da USP em São Paulo: o Bacharelado em Física Médica. A área em si não foi uma realização possível para a professora, que admitiu não ter estrutura para lidar com o ambiente do hospital. Mas uma área correlata, a Física das Radiações, tem sido sua paixão. “Continuei nos bastidores. Além de lidar com fenômenos da física, está muito próximo da aplicação porque essa área é muito empregada na medicina”, explica.

Neste ramo da Física, outro desafio acompanha a docente. Ela conta que há um desmerecimento com as ciências aplicadas por uma parcela de cientistas. “Às vezes eu sinto essa reação à ciência aplicada como se ela fosse de baixa categoria, e não é! Porque você tem que entender de mais de uma coisa e trabalhar na interdisciplinaridade”, afirma. E apesar da defesa, ela diz que não é do seu estilo ficar se lamuriando. “Vou continuar trabalhando, fazendo coisas que eu acho que são importantes e que têm tido reflexo nas publicações. Isso é suficiente para mim”.

Créditos

O texto acima foi escrito pela autora Tabita Said e retirado do site Jornahttps://jornal.usp.br/universidade/fisica-nuclear-analisa-filme-radioactive-e-destaca-trajetoria-de-mulheres-na-usp/l da USP, acessado em 28/09/2021.

Na imagem destaque: Rosamund Pike em filme Radioactive (2021), no qual interpreta física e química Marie Curie. Fonte: Divulgação / Netflix.

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